O início do ano teve despertar magnífico com o glam rock “Jump”, estando Eddie Van Halen no sintetizador, revelando um dos mais famosos riffs, candidato a uma rápida ascensão à top list da Billboard. Mas Orwell, 35 anos antes, não foi otimista e escrevia sua ficção sobre o futuro meio de controle das massas, de modo totalitarista no planeta, empregando-se “teletelas” que, evidentemente, com uma parafernália eletrônica gigantesca, faria o controle de todas as atividades humanas. O escritor futurista, todavia, não descreveu outras coisas mais bacanas que estariam ocorrendo, além de ter antecipado décadas antes o verdadeiro tempo do controle que é digital, via web, quando hoje só Deus sabe quem observa o que fazemos. Tudo isso nos remete ao reconhecimento facial digital. A tecnologia reconhece nossos caracteres faciais e é capaz de dizer quem somos. Haja maquiagem para ocultar!
Alguns anos após Jump, conversava com Jane, muito vaidosa, que questionava os resultados de imagens fotográficas em uma revista com uma atleta brasileira que foi playmate. Ela não acreditava que podia ser aquele monumento de mulher, rosto perfeito, aquela moça magérrima que se via muito em outras mídias não explícitas, descabelada ou de cabelos presos, e transpirando. Jane também questionava muito o que a informação digital que se aproximava poderia fazer, sendo meio descrente. Entendia ela o futuro mundo digital como uma quimera. Tive de explicar-lhe que já existia uma ferramenta computacional chamada por Photoshop que permitia correções detalhistas e atenuações em corpos humanos, acobertando imperfeições faciais ou corporais em geral, alterando tonalidade de pele etc. Isso ainda nos anos 1980. (Para quem desconhece, a primeira câmera digital para fotografias é de 1975, embora as imagens digitais tiveram seu desenvolvimento inicial em 1959. No Brasil se tornaram comuns as câmeras digitais e o abandono dos filmes químicos apenas em meados dos anos 2000. A primeira câmera SLR digital foi lançada em 1991, pela Nikon).
Antes do Photoshop, indústrias como Dior, Lancôme etc., já desenvolviam os produtos e técnicas para esconder manchas na pele, inicialmente muito empregadas para finalidades publicitárias, cinematográficas, teatrais etc., que pouco a pouco foram popularizando-se. Esses produtos químicos de make up evoluíram muito, segundo informações de magazines, dando suporte inclusive à arte fotográfica digital, para harmonização do que não é harmônico (por exemplo, manchado). Jane, que encontrei anos mais tarde com seu marido na São Paulo Fashion Week (na única vez que ali estive por curiosidade; e a convite dela), me contou que acabou se dedicando à moda feminina e a eventos do gênero.
Curioso, eu, voltando ao argumento que tive com ela nos anos 1980, perguntei-lhe o que as manequins usavam para harmonizar rostos. Ela me disse que quase nada, algo como produtos hidratantes e reflexivos apenas, pois “manequim” teria a exigência de ter pele perfeita, sem manchas, dentre muitos quesitos; mesmo porque são seus rostos que divulgam os produtos de beleza e deveriam ter uma tez invejável para as mulheres desejarem imitar, comprando os produtos. Manifestei a ela minha curiosidade pois, embora em outro universo, eu havia conhecido pessoas com quem convivia diariamente ou com certa frequência e que, evidentemente, não ficavam se empetecando, e apresentavam variações tonais e manchas na pele, como eu mesmo. Comentei que hoje em dia os produtos deveriam ser de desempenho incrível, pois já havia visto conhecidas em fotografias digitais no Orkut (rede social encerrada em 2014) que se transfiguravam; isso incluía não somente a parte de maquiagem, como cabelos e indumentária, fosse farta, regular, reduzida, mínima a ou inexistente).
Jane fez alguns comentários às minhas ignorantes ideias sobre beleza. Primeiramente, que o acesso a produtos de beleza de alto padrão é limitado à maioria das consumidoras, devido a seu elevado custo. Entendi perfeitamente, pois em muitas viagens minhas aos EUA me pediam para comprar um ou outro produto, e ficava chocado mesmo com o preço em moeda local, embora aqui custasse, o mesmo produto, duas a três vezes mais. Disse-me que uma certa amiga sua – Lais – uma colecionadora de sapatos (a quem me apontou discretamente com o dedo em meio à multidão do evento de moda), quando teve alguma ascensão econômica, começou a se produzir de rosto (além de Botox e silicones em outras partes) e fez fotos de alta resolução, colocando-as no Orkut, e alterando-as periodicamente. “Escrevia a ela no scrap: ‘Nossa… [não acredito] como você está linda!’. Até que um dia ela postou uma foto no perfil após mergulhar em rio e daí comentei: ‘Agora acredito que o perfil é seu…’”. Mostrou-me umas imagens dela empetecada e não era mesmo aquela que acenava no momento.
Também, após voltarmos à história do Photoshop, que ela não compreendera no passado, disse-me que havia batizado toda essa tecnologia de dissimular o viso como uma das primeiras fakes femininas da história, denominando as donzelas muito afeitas a esses produtos por fake beauty, e que se alguém duvidasse, bastava comparar o rosto antes do banho e após a ducha. “Bem-vindos sempre ao mundo virtual da beleza efêmera que nos oferecem”, afirmou-me com largo sorriso. A única evidência futurística até o momento, que já está disponível, em termos das teletelas de George Orwell, parece ser o controle geral por parte de todos se as imagens das pessoas conhecidas estão bonitas ou “meia-boca”; seu caráter, em geral, não é uma fonte de preocupação para quem observa. Deleita-se com imagens, que se tornaram a grande diversão solitária. O futuro se virtualiza na surrealidade das teletelas de Orwell em 1984. Talvez nos reconhecimentos faciais automáticos as maquiagens façam a diferença para quem não aprecia a si mesma.